Faltavam boas horas para o início da competição. Mas, em um quarto do prédio 31 da Vila dos Atletas, cada um dos confrontos da chave do peso-leve feminino acontecia na cabeça de uma insone judoca. Entre um cochilo e outro, a ansiedade para libertar-se de um fantasma que acompanhava Rafaela Silva há quatro anos era extravasada com o ensaio de golpes e a visualização da vitória. O público não viu esse treino na madrugada, não soube do vômito após a primeira luta e talvez duvide que ela só lembre da estreia e da final. Mas cada um desses detalhes compôs o caminho da menina da Cidade de Deus até o título olímpico no 8 de agosto mais especial dos seus 24 anos. Ela, que na infância lutava para ter chinelos, ao final do dia teria o mais valioso ouro pendurado no pescoço. Afinal, judô se luta com os pés no chão.
Na noite de domingo, Rafaela conversou com a coach Nell Salgado, responsável pelo aconselhamento que a fez sair da depressão que sucedeu a eliminação dos Jogos de Londres. Foi instigada na medida. Foi lembrada que chegava à segunda Olimpíada como 14ª do mundo, que sua performance era tida como uma incógnita. Sentiu a raiva necessária para canalizar sua força nos tatames.
Rafaela Silva brinca com a medalha de ouro (Foto: Danilo Verpa/NOPP)
Até tentou dormir por volta das 23h, mas cadê que o sono vinha? Era tanta coisa na cabeça... Um filme da frustração de quatro anos atrás, as ofensas racistas, as adversárias do dia seguinte... Elas estavam na cabeça desde que a chave tinha sido divulgada e tumultuaram o sono da campeã mundial de 2013.
- Na verdade eu não dormi. Ficava acordando de hora em hora. Quando é competição muito importante, eu não consigo dormir, fico imaginando cada luta depois que sai o sorteio das chaves. E toda hora acordava nas lutas, quando eu estava jogando as adversárias. Fiquei mentalizando a competição inteira. Ficava pensando que em Londres eu tinha sofrido bastante e que na minha segunda Olimpíada não queria sentir aquela sensação novamente.
Às 6h Rafaela levantou da cama, e uma hora depois tomou café da manhã e foi para a Arena Carioca 2. Ficou na área de aquecimento até ser chamada para o confronto com a alemã Myriam Roper. Pobre coitada... Durou só 45 segundos. A brasileira estava com sangue nos olhos. Entrou muito decidida na arena, passos rápidos, olhar cerrado e estalando o maxilar. Passou reto pela família e pelos amigos, que estavam na arquibancada.
Rafaela Silva vibra com a vitória história na final olímpica (Foto: Reuters/Toru Hanai)
Ao voltar para a área técnica, passou mal ao tomar um suplemento alimentar. Vomitou mesmo. E dali em diante a cápsula passou a ser diluída em uma bebida. Uma luta após a outra, o ritual se repetiu.
Mesmo sem ter virado em momento nenhum para o público, Rafaela viu onde estava a família. Depois das quartas de final, no intervalo entre as sessões, ela correu pela área da torcida e gritou para a mãe. Dona Zenilda subiu as fileiras, mas a diferença de altura entre os andares não permitiu um abraço. Permitiu, porém, que a filha ouvisse um sonho que se tornaria premonição: ela subiria ao pódio.
A profecia só não foi perfeita porque, na imaginação de dona Zenilda, a caçula estaria de quimono branco. Até usou o traje na semifinal, a luta mais tensa de todas. Rafaela achou que tinha ganho por wazari e apontou para a família. A arbitragem voltou atrás, e era nítida a expressão de dúvida. Mas a concentração voltou rapidinho. Garantiu a vaga na final, uma medalha olímpica, e se permitiu comemorar com um soco no ar.
Antes da decisão, nada de sorrisos. Dava para ver de longe os dentes de Rafaela, mas só pelas caretas que ela fazia ao estalar o maxilar. No tatame, conseguiu um wazari e administrou a vantagem até o cronômetro marcar dois segundos para o fim. Ali, ela se ajoelhou, ergueu os braços e finalmente se libertou. Gritou, chorou, abraçou o técnico Mario Tsuitsui, que a orientou durante as lutas. Subiu na grade e abraçou a irmã Raquel. Era lágrima que não acabava mais. Recebeu a medalha com o mais largo dos sorrisos e segurou o choro até acabar o Hino Nacional. Agora, pergunta do que ela se lembra?
Rafaela Silva derruba a atleta da Mongólia Dorjsuren na decisão (Foto: Reuters/Toru Hanai)
- Eu só lembro da minha primeira luta, contra a alemã, e da final. Eu estava tão concentrada para vencer que as coisas foram acontecendo e eu não lembro muito bem como as lutas foram. Só sei que venci todas e sou campeã olímpica. Depois vou ver os vídeos.
Com a medalha no peito, a maratona de entrevistas continuou por algumas horas. Para aparecer no Jornal Nacional, Rafaela até se maquiou, algo raríssimo. Reconhecida à distância por torcedores que passavam pelo estúdio na hora, foi ovacionada. Ouviu que era melhor que Neymar e gargalhou. Só parou de sorrir para comer um hambúrguer e quando encontrou a família. Aí caiu no choro ao abraçar a mãe.Dali, mais e mais entrevistas.
- Achei que eu ia lutar e depois ia embora...
Sabia de nada, a inocente... Depois, foi a uma festa na Casa do Time Brasil. Voltou ao Parque Olímpico para mais entrevistas e na sequência foi participação do programa Bala Olímpica, que tem entre os apresentadores o ex-judoca Flávio Canto, um de seus mentores no Reação. E só de madrugada Rafaela voltou à Vila dos Atletas. Era por volta de 4h. Se ela conseguiu dormir, são outros quinhentos. Os pensamentos devem ter borbulhado. O sorriso, sem dúvida, a acompanhou até conseguir fechar os olhos. Tudo aquilo era real.
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